Uma bolsa sem a alta frequência

Postado por Ricardo Schwalfemberg, planejador Life Finanças Pessoais

mercadoMarcelo d’Agosto aborda a tentativa da BM&FBovespa de conciliar o interesse de especuladores com o de investidores comuns e acredita ser fundamental que haja alinhamento de interesses entre os intermediários e as bolsas.

Valor Econômico – SP – 29/04/2014

29/04/2014 às 05h00

 

Por Marcelo d’Agosto

Imagine que você seja obrigado a estabelecer preços de compra e venda para uma determinada ação. Mas com o agravante de não ter nenhuma convicção se é melhor montar uma carteira com esse ativo ou se desfazer da posição.

 

Sem saber ao certo o valor de mercado do papel e pressionado para definir cotações, você decide comprar por R$ 21 e vender por R$ 22. Em seguida, alguém aparece para negociar e propõe um intervalo mais apertado: compra a R$ 21,10 e venda a R$ 21,40. Você desconfia. E reformula sua faixa de cotações. Agora você compra a R$ 21,35 e vende a R$ 21,75.

 

 

Se, de fato, o seu parceiro de negócios tiver interesse na ação, é provável que feche a transação no preço da sua oferta, a R$ 21,75. Nesse caso, ele economizaria R$ 0,25 ante a cotação original e você ganharia R$ 0,25 em relação ao ponto médio entre compra e venda. É uma transação boa para ambos.

 

Mas agora você tem um problema, pois vendeu uma ação que não tem ideia se tem potencial para subir ou se está fadada a cair. É preciso eliminar esse risco. Felizmente para você há investidores que também não conseguem acompanhar o ritmo de mudanças das cotações. Para muitos, a última informação é que o preço de compra da ação é R$ 21,10 e o de venda, R$ 21,40, conforme apregoou seu parceiro.

 

Para eliminar o risco da sua posição, basta então entrar em contato com um desses investidores retardatários e comprar o papel a R$ 21,40. E embolsar a diferença de R$ 0,35 entre o preço que você conseguiu vender e comprar o título.

 

Agora, imagine que toda essa interação pudesse ser feita por computador no intervalo de milionésimo de segundo. O número de negócios aumentaria muito e os lucros cresceriam de forma exponencial. Esse é o mundo das transações de alta frequência (HFT, na sigla em inglês), conforme abordado por Michael Lewis no seu mais recente livro, Flash Boys, ainda sem tradução no Brasil.

 

Lewis se especializou em explicar para o leitor comum como funcionam as engrenagens do sistema financeiro. No caso das transações de alta frequência, a complexidade é ainda maior. Até mesmo os grandes gestores de recursos do planeta deixaram de entender exatamente o caminho percorrido por suas ordens de compra e venda de ações. A sensação passou a ser de que alguém sempre consegue antecipar a intenção do gestor e lucrar com a transação.

 

O mercado americano é muito fragmentado. O investidor pode escolher negociar ações em diversas bolsas ou nos chamados “dark pools”, estruturas próprias administradas por grandes instituições financeiras. O argumento é que a fragmentação aumenta a liberdade de escolha e estimula a competição. No Brasil, existe apenas uma bolsa de valores, que possui monopólio virtual sobre as negociações.

 

Porém, tanto a fragmentação quanto o monopólio podem provocar distorções. No mercado americano, operações de arbitragem de cotações entre as diversas bolsas passaram a gerar lucros expressivos para um pequeno grupo de especialistas.

 

Como os negócios com ações acontecem hoje em intervalos de tempo menores do que um piscar de olhos, sofisticados algoritmos capazes de reconhecer e identificar padrões de comportamento de mercado passaram a ser ferramentas essenciais. Poucos conseguem desenvolver esses programas.

 

A infraestrutura física para os negócios também virou uma barreira importante. Cabos de fibra ótica conectados às diversas estações de negociação e computadores funcionando no mesmo ambiente das bolsas passaram a fazer parte do kit básico dos corretores mais bem sucedidos. É um investimento que custa caro.

 

Mas a tecnologia não é tudo. Ao retratar a saga de Brad Katsuyama para criar a IEX, uma bolsa dedicada aos interesses dos investidores, conforme material publicitário, Lewis consegue desmistificar de maneira muito crua as estratégias de alta frequência.

 

Para o sucesso dos negócios, é fundamental que haja alinhamento de interesses entre os intermediários e as bolsas. Nesse caso, o objetivo é depenar os investidores mais desavisados.

 

As estruturas das ordens de compra e venda tornaram-se incrivelmente complexas e passaram a ser negociadas com cada bolsa para atender interesses específicos dos especialistas de alta frequência. No fim das contas, o objetivo é tentar antecipar movimentos de mercado para dar uma vantagem aos mais favorecidos.

 

Outra forma de incentivo instigante é o pagamento pelo fluxo de ordens. De forma simplificada, é uma negociação semelhante à que acontece envolvendo a administração da folha de pagamento de servidores públicos e privados no Brasil, entre bancos e prefeituras ou empresas. Os bancos aceitam pagar para prestar o serviço porque estimam que conseguirão algum lucro com a operação, explorando as oportunidades de negócio com a nova base de clientes.

 

No Brasil, o volume de transações na BM&FBovespa cresce a 8% ao ano desde 2007. Os negócios podem aumentar se as transações de alta frequência forem estimuladas. Por ora, a bolsa parece tentar conciliar o interesse de operadores de alta frequência com o de investidores comuns. A questão é acompanhar até quando não ocorrerá algum tipo de conflito.

 

Marcelo d’Agosto é economista especializado em administração de investimentos com mais de 20 anos de experiência no mercado financeiro.

 

As opiniões contidas neste espaço refletem a visão do autor, e não a do Valor Econômico. (Veja os termos de uso completos em www.valor.com.br/valor-investe/o-consultor-financeiro)

Valor Econômico – SP – 29/04/2014

 

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